sábado, 26 de março de 2016

A Peleja do Cego Aderaldo com o Zé Pretinho do início do século passado

Meu pai (MJL) foi um bom contador de histórias. A Peleja do Cego Aderaldo com o Zé Pretinho do início do século passado, foi apenas uma, das que ouvi muito. Houve um tempo em que até sabia uma parte de cor. Agora, gravei em áudio e vídeo. O folclore brasileiro faz parte da vida de muitos de nós. Na verdade, perdi a oportunidade de gravar algumas histórias das muitas que ele contava. A Velha do Bacalhau, Capitão do Navio e a Peleja de Cego Aderaldo com José Pretinho do Tucum, apenas para citar algumas. Veja o vídeo. Espero que gostem, curtam, comentem e compartilhem. https://youtu.be/9cMEbgF7tF0
"Peleja de Cego Aderaldo com José Pretinho do Tucum"


Apreciem meus leitores
Uma forte discussão
que tive com Zé Pretinho
Um cantador do sertão
O qual no tanger do verso
Vencia qualquer questão
Um dia determinei
A sair do Quixadá
Uma das belas cidades
Do estado do Ceará
Fui até ao Piauí
Ver os cantores de lá
Hospedei-me em Pimenteira
Depois em Alagoinha
Cantei em Campo Maior
No Angico e na Baixinha
De lá tive um convite
Pra cantar na Varzinha
Quando cheguei na Varzinha
Foi de manhã bem cedinho
Então o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
Cego, você não tem medo
Da fama de Zé Pretinho?
Eu lhe disse: Não senhor
Mas da verdade eu não zombo
Mande chamar esse preto
Que eu quero dar-lhe um tombo
Ele vindo um de nós dois
Hoje há de arder o lombo
O dono da casa disse:
Zé Preto pelo comum
Dá em dez ou vinte cegos
Quanto mais sendo só um;
Mandou ao Macumanzeiro
Chamar José do Tucum
Chamou um dos filhos e disse
Meu filho, você vá já
Dizer a José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá
E ele como sem falta
À noite venha por cá Em casa do tal Pretinho
Foi chegando o portador
Foi dizendo: Lá em casa
Tem um cego cantador
E meu pai manda dizer
Que vá tirar-lhe o calor
Zé Pretinho respondeu:
- Bom amigo é quem avisa
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa
Mande benzer logo o lombo
Que eu vou dar-lhe uma pisa
Tudo zombava de mim
Eu ainda não sabia
Que o tal José Pretinho
Vinha para a cantoria
Às cinco horas da tarde
Chegou a cavalaria
O preto vinha na frente
Todo vestido de branco
Seu cavalo encapotado
Com um passo muito franco
Riscaram de uma só vez
Todos no primeiro arranco
Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria
O velho bem satisfeito
Folgava alegre e sorria
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria Vieram o capitão Duda
Tonheiro Pedro Galvão
Augusto Antônio Feitosa
Francisco Manuel Simão
Senhor José Carpinteiro
Francisco e Pedro Aragão
O José da Cabeceira
E seu Manuel Casado
Chico Lopes, Pedro Rosa
E Manuel Bronzeado
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé Furado
José Antônio de Andrade
Samuel e Jeremias
Senhor Manuel Tomás
Manduca João de Ananias
E veio o vigário velho

Cura de três freguesias
Foi dona Meridiana
Do grêmio das professoras
Essa levou duas filhas
Bonitas e encantadoras
Essas eram da igreja
As mais exímias cantoras
Foi também Pedro Martins
Alfredo e José Raimundo
Senhor Francisco Palmeira
João Sampaio Secundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo
Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha
Para mim veio um café
Com uma magra bolachinha
Depois trouxeram o negro
E colocaram no salão
Assentado num sofá
Com a viola na mão
Junto a uma escarradeira
Para não cuspir no chão
Ele tirou a viola
Dum saco novo de chita
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita
Ouvi as moças dizendo:
Grande viola bonita!


Então para me sentar
Botaram um pobre caixão
Já velho desmantelado
Desses que vem com sabão
Eu sentei, ele envergou
E me deu um beliscão
Eu tirei a rabequinha
Dum pobre saco de meia
Um pouco desconfiado
Por está em terra alheia
Ouvi as moças dizendo:
Meu Deus, que rabeca feia!
Um disse a Zé Pretinho:
A roupa do cego é suja
Botem três guardas na porta
Para que ele não fuja
Cego feio assim de óculos
Só parece uma coruja
Dissera o capitão Duda
Como homem mui sensato
Vamos fazer uma bolsa
Botem dinheiro no prato
Que é mesmo que botar
Manteiga em 
venta de gato

Disse mais: eu quero ver
Pretinho espalhar os pés
E para os dois cantores
Tirei setenta mil réis
Mas vou inteirar oitenta
Da minha parte dou dez
Me disse o capitão Duda
– Cego, você não estranha
Este dinheiro do prato
Eu vou lhe dizer quem ganha
Pertence ao vencedor
Nada leva quem apanha
Nisto as moças disseram:
Já tem oitenta mil réis
Porque o capitão Duda
Da parte dele deu dez
Se encostaram a Zé Pretinho
E botaram mais três anéis
Então disse Zé Pretinho:
De perder não tenho medo
Este cego apanha logo
Falo sem pedir segredo
Tendo isto como certo
Botou os anéis no dedo
Afinemos os instrumentos
Entremos em discussão
O meu guia disse a mim:
O negro parece o cão
Tenha cuidado com ele
Quando entrar em questão

Eu lhe disse: seu José
Sei que o senhor tem ciência
Parece que és dotado
Da Divina Providência
Vamos saudar o povo
Com a justa excelência


FIM (Parte I)

P- Sai daí, cego amarelo
Cor de ouro de toucinho
Um cego da tua forma
Chama-se abusa vizinho
Onde eu botar os pés
Cego não bota o toucinho
C- Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação
Como se maltrata outro
Sem haver alteração
Eu pensava que o senhor
Possuísse educação
P- Esse cego bruto hoje
Apanha que fica roxo
Cara de pão de cruzado
Testa de carneiro mocho
Cego, tu és um bichinho
Que quando come vira o cocho
C- Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores
Merece ganhar na sala
Rosas e trovas de amores
Mais tarde as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores
P- Cego, creio que tu és
Da raça do sapo sunga
Cego não adora a Deus
O Deus de cego é 
calunga
Aonde os homens conversam
O cego chega e resmunga
C- Zé Preto não me aborreça
Com o teu cantar ruim
O homem que canta bem
Não trabalha em verso assim
Tirando as faltas que tem
Botando em cima de mim

P- Cala-te cego ruim
Cego aqui não faz figura
Cego quando abre a boca
É uma mentira pura
O cego quanto mais mente
Inda mais sustenta a jura
C- Esse negro foi escravo
Por isso é tão positivo
Quer ser na sala de branco
Exagerado e ativo
Negro da canela seca
Todo ele foi cativo
P- Dou-te uma surra
De cipó de urtiga
Furo-te a barriga
Mais tarde tu urra
Hoje o cego 
esturra
Pedindo socorro
Sai dizendo: eu morro
Meus Deus que fadiga
Por uma intriga
Eu de medo corro…
C- Se eu der um tapa
Num negro de fama
Ele come lama
Dizendo que é papa
Eu rompo-lhe o mapa
Lhe rasgo de espora
O negro hoje chora
Com febre e com íngua
Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora
P- No sertão eu peguei
Um cego malcriado
Danei-lhe o machado
Caiu eu sangrei
O couro eu tirei
Em regra de escala
Espichei numa sala
Puxei para um beco
E depois dele seco
Fiz mais de uma mala
C- Negro és monturo
Molambo rasgado
Cachimbo apagado
Recanto de muro
Negro sem futuro
Perna de tição
Boca de porão
Beiço de gamela
Venta de moela
Moleque ladrão

P- Vejo a cousa ruim
O cego está danado
Cante moderado
Eu não quero assim
Olhe pra mim
Que sou verdadeiro
Sou bom companheiro
Cante sem maldade
Eu quero a metade
Cego, do dinheiro
C- Nem que o negro seque
A 
engolideira
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abreque
Mas este moleque
Hoje dá pinote
Boca de 
bispote
Venta de 
boieiro
Tu queres dinheiro
Eu dou-te chicote
P- Cante mais moderno
Perfeito e bonito
Como tenho escrito
Cá no meu caderno
Sou seu subalterno
Embora estranho
Creio que apanho
E não dou um caldo
Te peço, Aderaldo
Reparta do ganho

C- Negro é raiz
Que apodreceu
Casco de judeu
Moleque infeliz
Vai pra teu país
Senão eu te surro
Dou-te até de murro
Tiro-te o 
regalo
Cara de cavalo
Cabeça de burro
P- Fala doutro jeito
Com melhor agrado
Seja delicado
Cante mais perfeito
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero
Cante mais maneiro
Com versos capaz
Façamos a paz
Reparta o dinheiro

C- Negro careteiro
Eu rasgo-te a 
giba
Cara de 
guariba
Pajé feiticeiro
Queres dinheiro
Barriga de angu
Barba de quandu
Camisa de saia
Te deixo na praia
Escovando urubu
P- Eu vou mudar de toada
Para uma que mete medo
Nunca achei um cantor
Que desmanchasse esse enredo
É um dedo é um dado é um dia
É um dia é um dado é um dedo
C- Zé Preto este teu enredo
Te serve de zombaria
Tu hoje cegas de raiva
O diabo será teu guia
É um dia é um dado é um dedo
É um dedo é um dado é um dia

P- Cego respondestes bem
Como se estivesse estudado Eu também de minha parte
Canto verso aprumado
É um dedo é um dado é um dia
É um dia é um dedo é um dado
C- Vamos lá, José Pretinho
Que eu já perdi o medo
Sou bravo como o leão
Sou forte como o penedo
É um dedo é um dado é um dia
É um dia é um dado é um dedo
P- Cego agora puxa uma
Das tuas belas toadas
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas
Quase todo o povo ri
Só as moças estão caladas
C- Amigo José Pretinho
Eu não sei o que será
De você no fim da luta
Porque vencido já está
– Quem a paca cara compra
A paca cara pagará
P- Cego, estou apertado
Que só um pinto no ovo
Estás cantando aprumado
E satisfazendo ao povo
Este seu lema da paca
Por favor cante de novo
C- Digo uma e digo dez
No cantar não tenho pompa
Presentemente não acho
Quem o meu mapa rompa
Paca cara pagará
Quem a paca cara compra
P- Cego, teu peito é de aço
Foi bom ferreiro que fez
Pensei que o cego não tinha
No verso tal rapidez
Cego, se não for massada
Repita a paca outra vez
C- Arre com tanta pergunta
deste negro capivara
Não há quem cuspa pra cima
Que não lhe caia na cara
– Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara
P- Agora cego me ouça
Cantarei a paca já
Tema assim é um 
borrego
No bico de um carcará
Quem a cara cara compra
Caca caca Cacará
Houve um trovão de risadas
Pelo verso do Pretinho
O capitão Duda disse:
Arrede, pra lá negrinho
Vai descansar teu juízo
O cego canta sozinho
Ficou vaiado o Pretinho
Aí eu lhe disse: me ouça
José, quem canta comigo
Pega devagar na louça
Agora o amigo entregue
O anel de cada moça
Desculpe José Pretinho
Se não cantei a seu gosto
Negro não tem pé, tem gancho
Não tem cara tem é rosto
Negro na sala de branco
Só serve pra dar desgosto
Quando eu fiz estes versos
Com a minha rabequinha 
Procurei o negro na sala
Já estava na cozinha
De volta queria entrar
Na porta da camarinha  

FIM